quarta-feira, novembro 30, 2005

Fingido ou subtil?

Almada Negreiros, Maternidade, 1935

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernado Pessoa




Portanto, vira o disco e toca o mesmo, pois é caro amigo, fingido ou subtil?
Pessoa dizia que o poeta é fingidor, mas seria mesmo? Como podes tu descrever algo que não conheces? E será que quando mentimos, fingimos a verdade?
Vou pôr a questão ao geral das Artes. Esta é uma questão deveras difícil de explicar, mas vamos lá ver se eu me faço entender. Escrevemos algo, estamos a fingir, ou estaremos a fingir que fingimos para nos protegermos? Como podiam ser os poemas, poemas cheios de sentimentos, puras mentiras?
Mas eu só estou a levantar questões, sem tirar alguma conclusão.
Mesmo que o autor finja o fingimento, ou que simplesmente finja, há algo dele que passa para a obra, um sentimento escondido, desconhecido, esquecido, apagado, uma memória…Agora até que ponto conseguimos nós chegar a essa subtileza do autor, bom isso já é outra história, é complicado.
Mentira, verdade, mentira sobre a verdade ou verdade sobre a mentira, farsa ou cinismo, ingenuidade ou fraqueza, não lhe podes perguntar, e mesmo que pudesses, até que ponto iria o autor admitir a verdade? Eu cá acho, que não finge, esconde-se. Mentir, fingir, não é possível quando criamos, pois é algo que sai de nós, logo lá há de estar sempre a nossa eterna presença de produtores de algo. È o mesmo que os pais têm para os filhos, o seu sangue está sempre presente, mesmo que se tentem negar mutuamente. Diria até mais, quando produzimos fazemos verdadeiro papel de Deuses, afinal não é esse o maior poder Deles?Criar...Criamos mundos nossos, que saiem de nós, pode nem existir, mas somos nós pais e mães das nossas produções, que estamos lá, superados, mas estamos, sem mentiras ou fingimentos.

2 comentários:

José Borges disse...

Acho que a resposta a tudo está aqui, na segunda quadra:

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

Ou seja, de facto, o fingidor poeta, autor da sua obra, conhece o sentimento que o leva a escrever mas consegue separar-se dele, assim, abstraíndo-se de si mesmo, lêem o poema que é seu com sentimentos estrangeiros. Parece uma questão religiosa budista, este da abstração de si mesmo, mas não é impossivel, pois não? Logo, a poeta pode ser fingidor.

Diana disse...

Lá está, eu não acho que o poeta se separe do sentimento, porque se o fizesse nem o escrevia, ou desenharia...Simplesmente se separava dele, no entato ele escreve-o, tem necesidade de o soltar, produz algo através desse sentimento porque sem ele não iria produzir nada.